domingo, 25 de março de 2007

DO ESQUECIMENTO À MEMÓRIA: A restauração do Cemitério Israelita de Cubatão

Beatriz Kushnir
[Do esquecimento à memória: a restauração do cemitério israelita de Cubatão”. Jornal Resenha Judaica/Caderno Resenha Cultural, São Paulo, 2/5/1997, pp. 1 e 4]







Após quase três décadas de abandono, um cemitério considerado de párias está sendo restaurado e em breve será reaberto à visitação. Um local socialmente percebido como sagrado, por pertencer aos mortos, foi, nesse caso, por muitos identificado como a materialização de um pecado. Refiro-me ao cemitério israelita de Cubatão, que pertenceu a Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos), que está sendo restaurado pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, em cooperação com a Prefeitura de Cubatão.
Ali estão enterrados cerca de 15 homens e 60 mulheres de origem judia que tiveram como ofício a prostituição e a cafetinagem no baixo meretrício santistas, onde atuaram até a década de 60. São elas as famosas polacas. As polacas deixaram há muito de serem personagens desconhecidos tanto da comunidade judaica como fora dela.
Há alguns anos venho estudando a história deste grupo, em algumas cidades do Brasil, e mesmo fora dele. Meu olhar buscou seus universos fora do espaço do baixo meretrício, seu local de trabalho, voltando-se para a seguinte questão: como um grupo marginalizado, tanto pelos legisladores da cidade como pela comunidade judaica, recriou redes de solidariedade e sociabilidade que lhes definiu uma identidade social e uma auto-imagem positivas?
Para tanto, era preciso abandonar opiniões e julgamentos pré-concebidos e deixar que elas mesmas narrassem suas histórias. O desejo de trazer a história desse grupo e de, principalmente, deixá-los falar, passou necessariamente por escolhas difíceis. Meu compromisso foi sempre o de respeitar as suas vontades. Seguindo esta trilha, não há codinomes em meu trabalho. Isto porque, elas também não os usavam. Assinaram em todas as atas que vi das diferentes sociedades que analisei, utilizando seus nomes completos. No Rio, quando casavam, muitas vezes com não judeus, usavam seus nomes de maneira clara. Em São Paulo, se contraíram matrimonio fora do grupo religioso, continuaram a identificar-se com os seus nomes e sobrenomes judaicos.
Assim, mapeei cinco sociedades de ajuda mútua fundadas por estes homens e mulheres nas cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York.. Provavelmente estas não foram as únicas entidades fundadas por estes judeus e judias envolvidos com a prostituição. Em cada cidade onde o mercado era propício às exóticas moças judias, também devem ter existido suas sociedades, suas sinagogas e seus cemitérios próprios. O objetivo destas instituições era o de manter, na prática do cotidiano destes homens e mulheres, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais lhes era proibido e as demais instituições comunitárias judaicas não permitiam sua participação.
Foi para mimetizar esses locais judaicos que lhes eram proibidos e para garantir assistência na velhice e na doença, que as polacas, seus amigos e/ou maridos (judeus ou não), fundaram suas entidades de ajuda mútua, que muitas vezes mantinham sinagogas e cemitérios próprios, e que tinham como objetivo também a ajuda aos associados na velhice ou na doença. E foi dos corpos documentais dessas sociedades, de suas atas e estatutos, que eu “reconstituí”, na medida do possível, os seus mundos privados, o universo de suas vidas fora de seu trabalho. Meu desejo foi o de encontrar, através destes documentos, seus rostos e suas falas.
Muitas vezes as pessoas que se voltaram a este capítulo da história dos judeus no Brasil ocultaram, em seus trabalhos, os nomes dos envolvidos com a prostituição - que foram uma pequena minoria dentro da comunidade judaica. Justificam essa atitude como preservando a identidade dos descendentes das polacas, e condenam a atitude que eu tive em meu trabalho, de não esconder os nomes e sobrenomes dessas mulheres e homens. Pois bem, eu conheci e entrevistei filhos e filhas de polacas. Diferentemente do que o senso comum dita, essas pessoas parecem estar em paz com suas histórias e me deram declarações lindíssimas. Então, por que esconder as polacas? Talvez porque, para uma parcela da comunidade judaica, nossa identidade é um dado, e nesse somos os “escolhidos de Deus”. Portanto, acham que não pode haver entre nós pessoas que tenham vivido de ocupações moralmente condenáveis.

Na história da minha história em busca das polacas encontrei narrativas que falavam de seres humanos e suas vivências das circunstâncias da vida. O mais bonito, certamente, é que para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas. O lema da sociedade carioca fala por si. Eram as irmãs dos Cheised chel emes: da caridade de verdade, aquela que não deseja recompensa.
As polacas de Santos - No início da minha pesquisa, no final dos anos 80, e ao longo do trabalho, encontrei tanto pessoas dispostas a ajudar quanto verdadeiras muralhas a transpor. O historiador carioca Robert Pechman, do IPUR/UFRJ, contou-me que escreveu, em meados dos anos 70, uma reportagem sobre da história da comunidade judaica de Santos para a revista paulista Shalom. Durante esse trabalho, localizou o cemitério israelita de Cubatão. Contudo, as referências a essa parcela da comunidade judaica local foram censuradas pela revista...
Talvez seja de Pechman o mérito de ter “descoberto” o cemitério, fundado pela Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos). Pouco se sabe sobre esta sociedade, que congregava as polacas de Santos, e que mantinha o cemitério que ora vem sendo restaurado pela Chevra Kadisha de São Paulo.. Ao contrário do que aconteceu com os livros de atas das socidades de beneficência e assistência mútua das polacas de São Paulo e do Rio, os livros de atas das reuniões da sociedade de Santos não foram por mim localizados, à exceção de um, encontrado no Lar Golda Meir, referente à ata da Assembléia Geral Extraordinária, de 3 de dezembro de 1966.
Semelhante às entidades de São Paulo e do Rio, a SBRI de Santos tinha por finalidade a assistência e auxílio aos associados nos momentos difíceis, manutenção de uma sinagoga, onde se celebrava as principais festas, e de um cemitério para homens e mulheres judias que se ocuparam do baixo meretrício. No início dos anos 60, elas já viviam o fim de sua associação, com o falecimento de seus sócios e a impossibilidade de equilibrar receita e despesas.
Nesta ata por mim localizada, referente à assembléia da SBRI de Santos, em dezembro de 1966 na sede da
sociedade, convocada a partir de anúncio na "imprensa local e de São Paulo", estava em pauta a venda da sede social da entidade:
"em virtude de a receita da Sociedade estar bastante reduzida, por motivos e causas várias, notadamente pelo falecimento e mudança de domicílio de sócias, tem sido penoso à Diretoria a realização do objeto social. Tem sido possível atender aos fins da Entidade, mediante donativos. Há compromissos financeiros, porém, que atender com urgência. E, nessa emergência, não encontrou a Diretoria outra solução, senão a venda de propriedade da Sociedade situado nesta cidade (Santos), na Rua Amador Bueno nº 322, apurando-se numerário suficiente para a satisfação desses compromissos, como por exemplo, a construção de túmulos, necrotério etc. na parte do cemitério de Cubatão, doado pela Prefeitura Municipal à nossa Sociedade e possibilitando ainda, ampliar a assistência que vem prestando aos sócios e a realização de obras estatutárias."
Dirigiram os trabalhos desta assembléia:
Presidente da Mesa - Cecilia Oistrag Centofanti
Secretária - Regina Goodman Rothenberg
Escrutinadora - Joana Schlinberg
Escrutinadora - Rachel Waisman
Com a aprovação da venda, a sociedade passou a sediar-se na residência de sua presidente. Esta situação de declínio vivida pela SBRI de Santos em muito se assemelha às das sociedades de outras cidades. A sociedade santista foi lembrada, em seus áureos tempos, segundo os vizinhos de sua sinagoga, como contou Pechman, destacando que "[no passado, durante os] feriados judeus elas organizavam enormes festejos que chegavam a durar três dias. Naquelas datas elas traziam rabino e 'hazan' de São Paulo”.
A sócia Sarah Michelin, talvez lembrando-se deste tempo distante, apoia a venda da sede "para que a Sociedade não venha a perecer em futuro próximo", o que infelizmente acaba ocorrendo.
Esta ata de 1966 na verdade marca o ponto de partida de um processo de deterioração do cemitério israelita de Cubatão. É deste ano, também, o último sepultamento ali realizado. A partir de então, em decorrência da dissoução da Sociedade, causada pela morte da maior parte de seus sócios e pela decorrente falta de recursos, o lugar praticamente caiu em abandono.
Sua recuperação e futura conservação pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, entretanto, estará preservando a história das vidas destas mulheres qu
e, apesar de marginalizadas da sociedade judaica, soouberam e quiseram preservar sua identidade judaica.
Não somos nada, nos fazemos diariamente, escolhendo e dando perfil ao conjunto do qual queremos fazer parte. E isso as polacas souberam fazer. Colocadas à margem da coletividade, recriaram um mundo solidário nas suas sociedade de auto-ajuda. Não precisaram que ninguém lhes dissessem que eram judias. Se fizeram judias nas práticas do seu dia-a-dia. Sabiam que eram fruto de uma circunstância de miséria e exclusão do mercado de trabalho formal. Souberam viver essa diversidade e morreram preservando os ritos judaico.
Da memória ao esquecimento - Em São Paulo, as polacas foram mais numerosas do que em Santos, e sua história é melhor documentada. Os livros de atas da Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI), que as congregava, encontram-se nos arquivos do Lar Golda Meir, onde algumas das sócias passaram a residir na velhice. Na década de 60 foi firmado um acordo com o Lar, que fez com que os fundos obtidos pela venda da sede social da SFRBI, à Rua Ribeiro de Lima 44, fossem transferidos para o Lar Golda Meir que, em troca, comprometia-se a abrigar as sócias em sua velhice.
Por outro lado o cemitério da Sociedade, localizado junto ao cemitério do Chora Menino, no bairro de Santana - também abandonado, na década de 60 - acabou desapropriado e demolido pela prefeitura em 1971. Nada resta das lápides, da casa de Tahara ou de um comovente monumento que, neste campo santo, relembrava os seis milhões de judeus assassinados durante a Shoá.

Os ossos - ou o que deles restava - foram transferidos para o Cemitério do Butantã, mas estão sob 255 pequenas lajotas de cimento, de cerca de um metro de comprimento, sem qualquer menção aos nomes destes homens e mulheres. Estão enterrados como indigentes. Sua memória foi inteiramente obliterada pela intolerância de uma sociedade que os discriminou em vida e parece querer esquecê-los depois da morte.
O trabalho de restauração do Cemitério Israelita de Cubatão é um feito a ser comemorado com alegria. Mas é oportuno lembrar, neste momento, que existe uma dívida para com as memórias das vidas dos homens e mulheres cujos corpos vieram do Cemitério Israelita de Santana, e cuja lembrança, ao contrário do que agora acontece com a dos mortos de Cubatão, e à revelia de seus esforços para se manterem judeus em vida e depois da morte, foi aniquilada.
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"O Cemitério Israelita de Cubatão (62 km a sudeste da capital), na Baixada Santista, é constante objeto de interesse histórico. Com 75 sepulturas, 55 de mulheres e apenas 20 de homens – a mais antiga de 1924 e a mais recente de 1966 –, já foi tema de pesquisa acadêmica na UniSantos e é freqüentemente visitado por escolas. A curiosidade se deve ao fato de lá estarem enterradas em sua maioria as chamadas polacas, mulheres judias que, no início do século 20, deixaram o Leste Europeu atingido pelo anti-semitismo em direção à América e acabaram sendo exploradas na região. “Ainda hoje, o cemitério recebe a visita de antigas amigas daquelas mulheres”, diz Maria Salete Otama Onady, responsável pela manutenção do campo-santo. No livro Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua (ed. Imago), a historiadora Beatriz Kushnir relata a saga dessas imigrantes ao desembarcarem em Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Nova York.
MEMÓRIA – Quando a Chevra Kadisha assumiu o Cemitério Israelita de Cubatão, em 1996, o local se encontrava em completo estado de abandono, com sepulturas deterioradas e solo quebradiço. As obras de restauração do campo-santo foram executadas entre 1996 e 1997, na gestão de Marcos Zlotnik, e incluíram o conserto dos túmulos, a recuperação das matzeivot, ajardinamento, pavimentação das ruas, instalação de lavatório, colocação de placa indicativa no portão e de local apropriado para o acendimento de velas. Ainda no exercício de 1997, o campo-santo, que ocupa uma área de 853 metros quadrados anexa ao cemitério católico, foi reinaugurado. Desde então está em perfeito estado, com plantas floridas, solo ajardinado e sepulturas limpas.
Assim, além dos cemitérios de Vila Mariana, Butantã e Embu, a Chevra Kadisha cuida também da manutenção do de Cubatão, preservando de forma digna a memória de todos os integrantes de nossa comunidade. Localizado na rua São Vicente, s/n, no bairro Fazenda Cafezal, o Cemitério Israelita de Cubatão pode ser visitado de domingo a quinta, das 8 às 18h, e às sextas-feiras, das 8 às 16h. É necessário apenas solicitar a abertura do portão junto à administração do cemitério católico".

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