quinta-feira, 22 de março de 2007

Nomear é conhecer

Beatriz Kushnir, "Polacas voltam a ter nomes no Cemitério Israelita do Butantã”. Revista A Hebraica, São Paulo, Ano XLI, n.º 458, abril de 2000, pp. 48-51.
Por
alguns anos estudei a história de um grupo de imigrantes judeus em algumas cidades do Brasil e mesmo fora dele. Por curiosidade fiz as contas e percebi que fazem doze anos que me sinto debruçada e envolvida por essas trajetórias. Refiro-me as moças judias prostitutas que ficaram conhecidas como polacas. Meu trabalho foi também uma caminhada envolta em paixão. Enamorei-me por essas narrativas e desejei muito que um trabalho acadêmico pudesse interferir e transformar uma dada realidade. De muitas maneiras, posso dizer que carrego, orgulhosa essa glória, dividida certamente com muitos que pelo caminho também se apaixonaram por elas. Quando comecei a pesquisa, em 1988, era um tabu mencionar essa história. Outros tempos vivemos hoje felizmente, e me sinto muito gratificada por não ter desistido, idéia que sempre se mostrou para mim muito longínqua.
Em um país que editar uma tese já é um milagre, fazê-la um agente transformador é algo inominável. A cada palestra que era convidada a falar sobre as polacas, sublinhava o estado lastimável dos seus cemitérios e descortinava um passado, obrigando os que me ouviam a adentrar em um espaço envolto por mistérios e segredos desnecessários. Assim, em 1997 eu escrevi um artigo para o jornal paulista Resenha Judaica, sobre a restauração do cemitério israelita de Cubatão, que ficou três décadas abandonado e pertenceu à Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos), e foi restaurado pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo Chevra Kadisha, em cooperação com a Prefeitura de Cubatão. Ali estão enterrados cerca de 15 homens e 60 mulheres de origem judia que tiveram como ofício a prostituição e a cafetinagem no baixo meretrício santista, onde atuaram até a década de 1960.[1]
Dois anos depois, em 1999, o presidente da Chevra Kadisha, Marcelo Kochen, me convidou a ajudá-lo a colocar os nomes nas lápides das polacas que estão no Cemitério Israelita do Butantã. Isto porque, no fim dos anos de 1960 as sócias da Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFBRI), já idosas e sem poderem cuidar umas das outras, transferiram as sócias asiladas na entidade para o lar dos velhos da comunidade judaica de São Paulo, no bairro de Vila Mariana. O cemitério comprado pela SFRBI no bairro de Santana e inaugurado em 1928 foi desapropriado no início da década de 1970. O estado de abandono, a ausência de responsáveis pela SFRBI e as necessidades do cemitério católico ao lado, definiram esse ato. Pelos dados do departamento de Cemitérios da Prefeitura de São Paulo, haviam ali 233 corpos enterrados. Vinte e quatro desses foram reclamados por familiares, sendo dezoito transferidos para o Butantã e seis para cemitérios católicos na cidade. O restante foi colocado em fileiras de lápides sem identificação na quadra 136 do setor "N" do Cemitério Israelita do Butantã. Essa situação permaneceu por vinte e sete anos.
No dia 27 de fevereiro de 2000, a meu pedido, realizou-se naquele cemitério uma reza: a inauguração das lápides das sócias da SFBRI. O hazan David R. Hullock e depois o rabino Henri Sobel comandaram esse ato religioso. Ou seja, vinte e sete anos depois cada uma das mulheres e homens enterrados naquela quadra receberam nas suas lápides o seu nome e a sua data de falecimento. Sempre imaginei que esse seria o ponto final do meu trabalho, o resgate material daquelas identidades. Mas percebi que não há atos isolados. Ao assentar os nomes completos nas lápides, pode-se conhecer uma faceta de suas identidades. Entretanto essa não se esgota nesse ato e não nos faz conhecê-los. A única forma de tê-los um pouco mais completos é mergulhando nas suas histórias.
Nomear, conhecendo, é de outra ordem. Assim, creio que a investida deve se preocupar menos com a "lista de nomes" e os possíveis sobrenomes conhecidos. A glória ou não de muitos ao verem o seu "nome de família" ou o de um amigo ali e ficar preso a esse dado é não ter, infelizmente, a grandeza de espírito para inclinações mais densas. O nome naquelas lápides não é um ato de curiosidade para os vivos que ali vão olhá-los. É sim um presente póstumo para quem ali está. Em cada lápide, não se esqueçam, há os restos de um corpo, de uma história, de uma vida.
Na história da minha história em busca das polacas encontrei narrativas que falavam de seres humanos e suas vivências dos percalços e das alegrias do dia-a-dia. O mais bonito, certamente, é que para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas. O lema da sociedade carioca fala por si. Eram as irmãs dos Cheised chel emes: da caridade de verdade, aquela que não deseja recompensa. Nessas horas me lembro sempre de dona Rebecca, a última polaca carioca que morreu com 103 anos em 1984. Em uma conversa com o jornalista Zevi Ghivelder ela afirmou saber que era fruto de uma circunstância e soube vivê-la.
O meu desejo de trazer a história desse grupo e de, principalmente, deixá-los falar, passou necessariamente por escolhas difíceis. Meu compromisso foi sempre o de respeitar as suas vontades. Seguindo esta trilha, não há codinomes em meu trabalho, como também agora não existem identidades arrancadas nas lápides do Butantã. Isto porque, elas também não usavam nomes falsos Assinaram em todas as atas das suas sociedades de ajuda mútua que vi, das diferentes sociedades que analisei, os seus nomes completos. No Rio, quando casavam, muitas vezes com não judeus, acrescentaram aos seus nomes o sobrenome do amado, de maneira clara. Em São Paulo, se contraíram matrimonio fora do grupo religioso, continuaram a identificar-se com os seus nomes e sobrenomes judaicos[2].
Mas conhecer suas identidades só faz sentido quando sabemos de quem estamos falando. Mais do que nomes ao vento, histórias de vida. Pelo meu desejo sincero de ter podido contribuir para esse conhecer, gostaria de concluir com as palavras do rabino Sobel na reza do dia 27 de fevereiro, torcendo que estas sejam palavras proféticas:

"rezamos hoje 'El malê rachamim' em memória das mulheres sepultadas nesta área do cemitério. Que cada uma delas descanse em paz."

-----------
Notas:
[1] Devo a Robert Pechman (IPUR/UFRJ) a menção desse local e a Felipe Doctors as fotos do local em 1970.
[2] Mapeei cinco sociedades de ajuda mútua fundadas por estes homens e mulheres nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York. Provavelmente estas não foram as únicas entidades fundadas por estes judeus e judias envolvidos com a prostituição. Em cada cidade onde o mercado era propício às exóticas moças judias, também devem ter existido suas sociedades, suas sinagogas e seus cemitérios próprios. O objetivo destas instituições era o de manter, na prática do cotidiano destes homens e mulheres, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais lhes era proibido e as demais instituições comunitárias judaicas não permitiam sua participação.

Um comentário:

Wandhklêyson disse...

Este foi um dos mais comoventes e corajosos textos que já li em minha vida.

Parabéns pelas pesquisas.