domingo, 18 de março de 2007

Os perigos de um jornalista desinformado






Li
, ontem (26/8/2006), espantada, no Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, a resenha do livro "Bertha, Sophia e Rachel – a sociedade da verdade e o tráfico das polacas nas Américas” (Autor: Isabel Vincent. Tradução: Alexandre Martins. Editora: Relume Dumará. Quanto: R$ 39,90, 248 págs.). O jornalista, autor da resenha, é editor das revistas "EntreLivros" e "História Viva", e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes, pela Publifolha).
Oscar Pilagallo destacava que o “foco do livro é a inédita associação que as polacas criaram para enfrentar a rejeição da comunidade judaica”.Pena o prestigiado jornalista não ter se detido numa pesquisa básica para escrever sua crítica. Isto porque, sou autora do livro “Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição, as polacas e suas associações de ajuda mútua”, fruto de minha dissertação de mestrado em História, na Universidade Federal Fluminense, defendida em 1994 e publicada pela Editora Imago em 1996. Fui a primeira a localizar a Sociedade de Ajuda Mútua delas no RJ, trabalhando também como o material localizado das de SP, Santos, Buenos Aires e NY. No Rio, localizei descendentes das polacas e o contador da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI).
No meu livro proponho que a análise deste fato possibilita compreender a densa problemática da construção de uma identidade judaica em seu conceito moderno. Este estudo não tem, portanto, como objeto a reflexão da prostituição e da sexualidade que absorveu médicos, juristas e policiais na virada do século XX nas principais capitais do país, seguindo uma tendência mundial de normatizar condutas e controlar o espaço público.
Busquei reconstituir como um determinado grupo, marginalizado na sua dupla condição de imigrante e de fora da lei, viabilizou mecanismos de auto-proteção que lhes permitiram romper a exclusão religiosa e social na qual os legisladores do país e os dirigentes das comunidades judaicas os colocaram. Assim, para além de percebê-los como vítimas sociais da miséria e dos processos migratórios, desejou-se perceber seus mecanismos de sobrevivência e de construção de uma identidade social tida como positiva.Os homens e mulheres envolvidos na atividade do tráfico e no mercado da prostituição estrangeira, e que eram de origem judaica, obviamente não encontraram a possibilidade de construírem laços de solidariedade e sociabilidade com as comunidades judias nas cidades onde coexistiram. Foram percebidos sempre como transgressores sem caráter, estabelecendo, pela oposição de condutas, o lado bom e mau da comunidade. Algo talvez compreensível, vindo de imigrantes que fugiam de perseguições religiosas e queriam a todo custo construir uma imagem positiva na nova pátria imigrada.


Entretanto, em um ponto estes dois lados da comunidade judaica se encontravam: a dura condição de estrangeiro lhes era comum.Este mecanismo de separação gerou neste grupo excluído um interessante artifício de sobrevivência: a necessidade de organizar instituições – sociedades de ajuda mútua – que refizessem uma vida social e religiosa e lhes permitissem reconstituir uma identidade pelas práticas coletivas. E foi para encontrar tais traços que, desde o início, esta pesquisa buscou localizar fontes produzidas pelos homens e mulheres envolvidos nesta atividade e, assim, abandonar leituras de terceiros acerca de sua existência. É por isso que o livro tem como imagem central a de um baile de máscaras. Desejando apreender rostos e não rótulos, objetivou-se encontrar tais pessoas e suas histórias particulares, rompendo com as máscaras sociais previamente estabelecidas.
Na pesquisa foi possível encontrar o histórico de cinco sociedades fundadas por homens e mulheres judeus envolvidos com a prostituição: a do Rio de Janeiro – Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI) – fundada em outubro de 1906; a de São Paulo – Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFRBI) – fundada em 1924; a de Santos – Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos – fundada em 1930; a de Buenos Aires – Sociedade de Ajuda Mútua Zwi Migdal – fundada em 1906; e a de Nova York – The New York Independent Benevolant Association – fundada em 1896.


Entretanto, só as duas primeiras são objeto do texto, pois são delas os documentos originais examinados: atas, estatutos, livro-caixa, material iconográfico e depoimentos de funcionários e/ou descendentes. A entidade carioca, dirigida ora por homens ora por mulheres, pode ser mais bem percebida como uma irmandade centralizada em poucas figuras que tentou sempre superar crises, dando a impressão de um eterno recomeço e reestruturação para levar a cabo seus objetivos. A idéia de irmandade pode ser vista em dois momentos: primeiro quando o grupo de mulheres que cuidava da assistência social se auto-intitula as irmãs do "Chesed shell emes" – ou da "Caridade de Verdade", aquela que não busca recompensa. E um segundo momento, quando a Primeira Irmã Superiora falece, em 1932.


A materialização desta noção de irmandade encontra-se na lápide de Fanny Zusman, no cemitério fundado pela entidade carioca e que se localiza no bairro de Inhaúma (RJ), este é o primeiro cemitério judeu da cidade. Em São Paulo, a comunidade judaica permitiu, por um lado, que as polacas fossem amparadas no Lar dos Velhos (asilo mantido pela comunidade no bairro de Vila Mariana), e não permitiu, por outro, a manutenção de suas identidades quando do translado dos corpos do Cemitério Israelita de Santana/Chora Menino para o Cemitério Israelita do Butantã. Nos anos de 1970, após a desestruturação física da entidade paulista, com a velhice de seus membros, o cemitério da sociedade, em Santana/SP, foi desapropriado pela Prefeitura dado o seu estado de abandono.


Os corpos não reclamados por parentes foram removidos para o cemitério israelita da cidade. Só em 27/2/2000, certamente pelos desdobramentos que a publicação de meu livro obteve, a Sociedade Cemitério Israelita Chevra Kadish, de SP, recolocou os nomes nas lápides vindas de Santana/Chora Menino, numa cerimônia que contou com a presença e a reza do Rabino Soibel. Portanto, caro jornalista Oscar Pilagallo, teses dão muito prazer e trabalho aos seus autores. Um estudo como este, financiado pela CAPES, num Programa de Pós Graduação em História como o da Universidade Federal Fluminense, de grau máximo, não ficou nas prateleiras das bibliotecas. Ganhou as estantes das livrarias e inúmeras reportagens a época. O tema merecia uma pesquisa sua para elaborar a resenha. Até porque, ao que parece, indicações no livro recente “beberam” nas minhas reflexões.

Nenhum comentário: