sábado, 18 de agosto de 2007

Nomear é conhecer: as lápides das polacas no Cemitério Israelita de Inhaúma

Alguns meses atrás recebi um e-mail do Silvio Tendler me pedindo que auxiliasse o Rabino Bonder no shabat em homenagem aos judeus que lutaram contra a ditadura. Não conhecia pessoalmente o Rabino e na troca de correspondências, lhe fiz um pedido: um shabat para as polacas. Isto porque, vivia uma dor inominável: profanaram o meu direito sagrado de visitar um cemitério que conheço desde 1969. Havia sido impedida de adentrar ao Cemitério Israelita de Inhaúma. Os planos para aquele terreno me fizeram solicitar ao Rabino essa ajuda.
Por alguns anos estudei a história de um grupo de imigrantes judeus em algumas cidades do Brasil e mesmo fora dele. Por curiosidade fiz as contas e percebi que há vinte anos me sinto debruçada e envolvida por essas trajetórias. Refiro-me as moças judias prostitutas que ficaram conhecidas como polacas. Meu trabalho foi também uma caminhada envolta em paixão. Enamorei-me por essas narrativas e desejei muito que um trabalho acadêmico pudesse interferir e transformar uma dada realidade. De muitas maneiras, posso dizer que carrego orgulhosa essa glória, dividida certamente com muitos que pelo caminho também se apaixonaram por elas.
Quando comecei a pesquisa, em 1988, era um tabu mencionar essa história. Seria difícil imaginar um ato como esse naqueles tempos. Parece que vivemos outros momentos hoje, felizmente. Será? Torço que sim. Espero que a noite de hoje não seja uma ato isolado e único dentro do calendário de shabat externos. Confio que os que aqui vieram estejam estabelecendo um pacto de solidariedade com elas. Um acordo que exige ação. Portanto, me sinto muito gratificada por não ter desistido, idéia que sempre se mostrou para mim muito longínqua. “Não, não pode”, expressão que tanto ouvi, constroem em mim uma força contraria. Se acharem que não pode, ai é que quero mais.
Em um país que editar uma tese já é um milagre, fazê-la um agente transformador é algo inominável. A cada palestra que eu era convidada a falar sobre as polacas, sublinhava o estado lastimável dos seus cemitérios e descortinava um passado, obrigando os que me ouviam a adentrar em um espaço envolto por mistérios e segredos desnecessários. Assim, em 1997, 10 anos atrás, eu escrevi um artigo para o jornal paulista Resenha Judaica, sobre a restauração do cemitério israelita de Cubatão, que ficou três décadas abandonado e pertenceu à Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos (SBRI de Santos), e foi restaurado pela Sociedade Cemitério Israelita Chevra Kadisha de São Paulo, em cooperação com a Prefeitura de Cubatão. Ali há 75 sepulturas, 55 de mulheres e 20 de homens, sendo a mais antiga de 1924 e a mais recente de 1966. Todas são de origem judia que tiveram como ofício a prostituição e a cafetinagem no baixo meretrício santista, onde atuaram até a década de 1960.[1]
Em 1998, o diretor teatral Iacov Hillel encenou, em São Paulo, uma peça sobre as polacas. Naquela época escrevi um texto para ser publicado no programa da peça. Esse terminava com um desejo:

"Entendo que só há uma justificativa para retornar à temática das polacas seja em um estudo acadêmico, em um romance ou em uma peça: esta é a hora de exorcizar demônios. Não que elas o sejam, mas é como alguns de nós as encaram. Podermos nos ver, nós judeus, como um grupo cujo perfil é múltiplo, auxilia a vivenciar a identidade judaica como um prazer e não como uma dor. Que essa peça, ora em cartaz, nos faça repensar o lugar que as polacas ainda têm junto à comunidade judaica. E que, principalmente, nos faça entender que é chegado o momento de recolocarmos seus nomes nas lápides do Cemitério Israelita do Butantã".

Meses depois, de forma clara e serena, firme e decisiva, o então presidente da Chevra Kadisha de São Paulo, Marcos Zlotnik, me convidou a ajudá-lo a colocar os nomes nas lápides das polacas que estão no Cemitério Israelita do Butantã. Isto porque, no fim dos anos de 1960 as sócias da Sociedade Feminina Religiosa e Beneficente Israelita (SFBRI), já idosas e sem poderem cuidar umas das outras, transferiram as sócias asiladas na entidade para o lar dos velhos da comunidade judaica de São Paulo, no bairro de Vila Mariana. O cemitério comprado pela SFRBI no bairro de Santana/Chora Menino e inaugurado em 1928 foi desapropriado no início da década de 1970. O estado de abandono, a ausência de responsáveis pela SFRBI e as necessidades do cemitério católico ao lado, definiram esse ato. Pelos dados do departamento de Cemitérios da Prefeitura de São Paulo, haviam ali 233 corpos enterrados. Vinte e quatro desses foram reclamados por familiares, sendo dezoito transferidos para o Butantã e seis para cemitérios católicos na cidade. O restante foi colocado em fileiras de lápides sem identificação na quadra 136 do setor "N" do Cemitério Israelita do Butantã. Essa situação permaneceu por vinte e sete anos.
No dia 27 de fevereiro de 2000, a meu pedido, realizou-se naquele cemitério uma reza: a inauguração das lápides das sócias da SFBRI. O hazan David R. Hullock e depois o Rabino Henry Sobel comandaram esse ato religioso. No mesmo dia em que fizeram a descoberta da Matzeiva de Leon Feffer. Ou seja, vinte e sete anos depois cada uma das mulheres e homens enterrados naquela quadra receberam nas suas lápides o seu nome e a sua data de falecimento.
Ao me referir aqui ao Rabino Sobel, presto uma homenagem a esse amigo de tantas horas e que, por fim, nos mostrou algo tanto caro aqui: os limites do humano em cada um de nós.
Sempre imaginei que recolocar os nomes nas lápides do Butantã seria o ponto final do meu trabalho, o resgate material daquelas identidades. Mas percebi que não há atos isolados. Ao assentar os nomes completos nas lápides, pode-se conhecer uma faceta de suas identidades. Entretanto essa não se esgota nesse ato e não nos faz conhecê-los. A única forma de tê-los um pouco mais completos é mergulhando nas suas histórias.
Nomear, conhecendo, é de outra ordem. Assim, creio que a investida deve se preocupar menos com a "lista de nomes" e os possíveis sobrenomes conhecidos. A glória ou não de muitos ao verem o seu "nome de família" ou o de um amigo ali e ficar preso a esse dado é não ter, infelizmente, a grandeza de espírito para inclinações mais densas. O nome naquelas lápides não é um ato de curiosidade para os vivos que ali vão olhá-los. É sim um presente póstumo para quem ali está. Em cada lápide, não se esqueçam, há os restos de um corpo, de uma história, de uma vida.
Nesses vinte anos, presenciei de tudo um pouco. De pessoas tento crises histéricas, durante minhas palestras se dizendo filhas, netas, sobrinhas das polacas, a ligações telefônicas estranhas, de possíveis descentes. Quase sempre, histórias fantasiosas. Não é na ligação de sangue que está a herança. O nosso compromisso com elas transcende o DNA. Chegar até elas sempre foi meu objetivo maior. Até que um dia escutei a seguinte frase: “Ah, você quer saber quem somos nós” ?
Foi assim que o meu encontro com Zelda, uma senhora octogenária que veio dar corpo e voz a uma pesquisa. Deparei-me, literalmente, com Zelda e sua irmã, Celina[2], em um domingo de sol no final de setembro de 1993, entre o Rosh Hashaná e o Iom Kipur, quando os vários cemitérios judeus por todo o mundo ficam lotados. Mantendo tal costume, tais senhoras estavam visitando seus mortos.
Em um cemitério onde estão enterrados um total de 797 corpos, entre homens, mulheres e crianças vinculados à Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, fundada em 1906 e que comprou em 1912, o terreno daquele cemitério, o primeiro israelita da cidade. Para Zelda e Celina, elas sim filhas de uma polaca, diferente das narrativas fictícias que vieram ao meu encontro, foi muito difícil contar o que se passou.
Na história da minha história em busca das polacas encontrei narrativas que falavam de seres humanos e suas vivências dos percalços e das alegrias do dia-a-dia. O mais bonito, certamente, é que para onde emigraram, fundaram sociedades que mimetizavam o mundo judaico do qual estavam alijadas. Mulheres do seu tempo, quando não tinham miniam, contratavam. Como também o faziam para terem um hazan/rabino que conduzisse o serviço religioso.
Meu trabalho pode trazer a fala dessas sociedades. Não escutei alguém falar sobre elas. Quis que elas falassem de si. E consegui. O lema da sociedade carioca fala por si. Eram as irmãs dos Cheised chel emes: da caridade de verdade, aquela que não deseja recompensa.
Nessas horas me lembro sempre de dona Rebecca, a última polaca carioca, a Quarta Irmã Superiora, que morreu com 103 anos em 1984 e que, certamente não por sua vontade, está no Cemitério Israelita do Caju e não em Inhaúma. Em uma conversa com o jornalista Zevi Ghivelder ela afirmou saber que era fruto de uma circunstância e soube vivê-la. Jamais se viu vítima. Não eram. Não há enganos. Há os limites do humano, até porque, a maior parte dos bordeis na Europa Oriental pertencia aos judeus. Não lhes era uma profissão desconhecida.
O meu desejo de trazer a história desse grupo e de, principalmente, deixá-los falar, passou necessariamente por escolhas difíceis. Meu compromisso foi sempre o de respeitar as suas vontades. Seguindo esta trilha, não há codinomes em meu trabalho, como também agora não existem identidades arrancadas nas lápides do Butantã e de Cubatão. Isto porque, elas também não usavam nomes falsos. Assinaram em todas as atas das suas sociedades de ajuda mútua que vi, das diferentes sociedades que analisei, os seus nomes completos. No Rio, quando casavam, muitas vezes com não judeus, acrescentaram aos seus nomes o sobrenome do amado, de maneira clara. Em São Paulo, se contraíram matrimonio fora do grupo religioso, continuaram a identificar-se com os seus nomes e sobrenomes judaicos, e hoje, homens não judeus estão nas lápides do Butantã. Vieram com elas de Santana/Chora Menino[3].
Mas conhecer suas identidades só faz sentido quando sabemos de quem estamos falando. Mais do que nomes ao vento, histórias de vida. Pelo meu desejo sincero de ter podido contribuir para esse conhecer, gostaria de concluir com as palavras do Rabino Sobel na reza do dia 27 de fevereiro, torcendo que estas sejam palavras proféticas e que possam, em breve, também serem ditas no Cemitério Israelita de Inhaúma, hoje trancado pela Sociedade Comunal Israelita com o apoio da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro.

"rezamos hoje 'El malê rachamim' em memória das mulheres sepultadas nesta área do cemitério. Que cada uma delas descanse em paz."

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Notas:
[1] Devo a Robert Pechman (IPUR/UFRJ) a menção desse local e a Felipe Doctors as fotos do local em 1970.
[2] Estes não são seus verdadeiros nomes, mas a forma encontrada, segundo o pedido das entrevistadas, para preservar suas identidades.
[3] Mapeei cinco sociedades de ajuda mútua fundadas por estes homens e mulheres nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York. Provavelmente estas não foram as únicas entidades fundadas por estes judeus e judias envolvidos com a prostituição. Em cada cidade onde o mercado era propício às exóticas moças judias, também devem ter existido suas sociedades, suas sinagogas e seus cemitérios próprios. O objetivo destas instituições era o de manter, na prática do cotidiano destes homens e mulheres, a identidade religiosa, já que o convívio com as comunidades judaicas locais lhes era proibido e as demais instituições comunitárias judaicas não permitiam sua participação.

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